19.4.13

há histórias que não têm um final feliz


Em tempos conheci um homem muito peculiar. Gostava de andar bem vestido. Em algumas ocasiões não dispensava aquele fato especial que lhe custou uma fortuna. Porém, raramente o vestia. Aliás, só o usou em casa. Nas restantes vezes que o tirou do armário, deitou-o cuidadosamente sobre a cama. Ao lado daqueles sapatos pretos bastante caros que ainda tinham as solas novas. Costumava dizer que estava à espera de uma ocasião especial para usar o fato na rua, de forma a que todos o pudessem observar.

Mesmo sem fato, este senhor era aprumado. Barba sempre feita. Penteado. E roupas, que não sendo caras, combinava na perfeição. Gostava de definir o seu estilo como casual chic. Uma vez confessou-me que não sabia o significado dessa definição. Mas como toda a gente dizia ser moda, era assim que ele se definia quando alguém lhe perguntava o seu estilo. Dizia que não se importava de ser apenas mais um. Charmoso, este homem era muito assediado por mulheres. Contudo, nunca amou. “Estas gajas são umas interesseiras. Não gostam de mim pelo que sou mas pelo que lhes posso dar”, dizia-me. Apesar de ter tentado, nunca consegui fazer com que percebesse que existem pessoas despidas de interesses. “És um estúpido por pensar assim”, disparava contra mim. Contra o único amigo que tinha e que ainda o ouvia.

Este homem que conheci, defendia ser único no mundo. Aos seus olhos, só ele é que tinha conquistado o pouco que tinha de forma honesta. Recordo-me das nossas discussões sobre futebol. Para ele, Messi e Ronaldo não passavam de jogadores que tinham alcançado o sucesso por causa dos empresários. Pois, “talento não tinham nenhum”, defendia. Como também gostava de cinema, passávamos largos minutos a discutir a sétima arte. Até que, um dia ousei dizer-lhe que estava contente por termos portugueses a brilharem no estrangeiro enquanto actores. “Esses? Não valem nada. Aposto que as gajas dormiram (ele usava outra expressão mais corriqueira) com alguém e até nem me admiro que os gajos façam o mesmo. É tudo igual”, afirmava, corrosivo como sempre.

Recordo-me ainda do dia em que estivemos numa esplanada na Quinta do Lago, no Algarve. Passou por nós um Ferrari vermelho, daqueles para que todos olham boquiabertos. Disse-lhe que se tivesse dinheiro era capaz de comprar um daqueles. “Esquece! Para isso tens de vender droga como esse cabrão faz, de certeza”, disse. Resumindo, aos olhos deste senhor, tudo tinha sido alcançado a troco de alguma coisa. Não havia sucesso nem riqueza por mérito, suor e muito trabalho.

Esta maneira de ser fez com que me afastasse dele. Eu, o seu único amigo. Confesso que me fartei da sua visão do mundo. Das pessoas. E daquilo que os move. Até que, num dia destes recebi um telefonema de um familiar dele. Era para me dizer que tinha morrido. Como nunca amou, não tinha ninguém. A família também não queria saber dele. Como sabiam que era o seu único amigo, pediram-me para ir à casa dele desfazer-me das coisas que tinha.

Não me apetecia mas acabei por ir. Aquilo que destaco é o fato que referi no início. Permanecia novo. Ainda tinha as etiquetas todas. E os sapatos brilhavam como se tivessem sido comprados naquele momento. Ele tanto esperou por uma ocasião especial que morreu sem que o fato e os sapatos tenham sido vistos por outras pessoas.

Aquilo que mais me entristece não é o facto dele ter morrido. Mas sim ter morrido sozinho porque afastou todas as pessoas que se interessavam por si. Ninguém chorou a sua morte. Nem a família. Nem eu, o único amigo que teve em vida. E será recordado como o invejoso que não sabia amar e que via mal em todas as pessoas. Infelizmente, não posso dizer que não seja merecido.

Ah! Já me esquecia de dizer. Este senhor peculiar que conheci chamava-se povo. E tem milhões de irmãos que ainda andam por aí a viver da mesma forma que ele vivia. E que vão ter o mesmo final que ele teve.

71 comentários:

  1. gostei...arrepiou-me! Faz-nos acordar para a vida! Há muita gentinha assim!!!

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  2. Como diz o outro: "Vale a pena pensar nisto..."

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  3. Infelizmente ha tao pouco gente capaz de ficar feliz pela conquista alheia...genuinamente feliz!!

    Eu sempre que posso uso o "meu fato caro e os meus sapatos de luxo" :)

    Liz

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    1. Fazes bem. Porque cabe a nós escolher o momento para usar essa roupa :)

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  4. Excelente é a palavra que me ocorre.

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  5. Adorei. Muito bom. Viver o momentto como se fosse o ultimo...

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    1. E preocupar com aquilo que realmente interessa. Lutar pelo que é nosso em vez de destruir o que é dos outros.

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  6. Este texto está qualquer coisa de genial! Um texto bem escrito e de uma fluidez, que nos cativa até ao final da leitura.

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  7. ..nós todos que lemos esperamos ser diferentes, não é?
    Pois. Mas todos somos um bocadinho iguais...quem já nao achou que esta ou aquela atriz ou cantora dormiu com este ou com aquele para ter sucesso? Todos nós...
    Enfim..temos apenas que ter bom senso para não afastarmos quem nos ama...

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    1. Pensar isso ocasionalmente é comum. Até porque há casos desses. Agora, fazer disso regra geral é assustador.

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  8. estragaste a historia no ultimo parágrafo.. lições de moral a esta altura do campeonato? já nem vale a pena...

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    1. Confesso-te que uma das minhas frases preferidas é "tudo vale a pena se a alma não é pequena", de Fernando Pessoa.

      Enquanto a alma não for pequena, lutarei. Depois, desisto dessas almas.

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  9. Concordo com quase tudo, excepto com a história do fato: a maior parte das pessoas que conheço tem orgulho em mostrar a roupa que tem de melhor, não a costuma guardar. ;) beijinho

    pippacoco.blogspot.pt

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    1. Troca o fato pela porcelana vista alegre. LOL.

      Todas as escolhem para "dote", para utilizar em ocasiões especiais, mas depois ficam no aparador, porque podem partir e são caras...

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    2. Pippa a historia do fato e verdadeira...o meu amigo, similar ao amigo do hsb, tem ate varios desde Armani, Boss,...que esperam a tal "ocasiao especial" que como e descrito podera nao acontecer...
      Bjs

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    3. Eu acho que ainda há muitas pessoas que guardam os fatos das suas vidas. Há muitos que ostentam fatos que não são seus.

      É um misto.

      beijos

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  10. Confesso-te que me arrepiei...e numa coisa tens razão andamos muitas vezes tão no nosso mundinho e preocupados em criticar tudo e todos que nos esquecemos de apreciar os pequenos e bons momentos da vida...uma lição de vida sem dúvida...para pensar! Obrigada pela partilha...e por abanares o meu mundinho um pouco...

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    1. Saber que isso aconteceu é muito bom para mim. Ganhei o dia :)

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  11. Assustei-me, com este teu texto, acredita...

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  12. Um dos teus melhores textos. Mesmo!!

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  13. Estou desconcertada, sem palavras. Adorei.

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  14. Gosto da capacidade que tens de me surpreender todos os dias da melhor forma ! desejo-te um ferrari...e um excelente fim-de-semana, beijos

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    1. É tão bom saber isso :)

      Passa por cá amanhã, ok?

      beijos e bom fim-de-semana.

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  15. Que murro no estomago. O pior? É ler bem o texto e pensar quantas vezes nos cruzamos com este ser (o nosso eu) e o dos outros.
    MS

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    1. Se não temos cuidado e se não nos rodeamos das pessoas certas, esta pessoa pode facilmente crescer dentro de nós.

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  16. Há histórias assim e estiveste muito bem, :)

    Abraço e bom fim-de-semana.

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  17. É por isso que o serviço e toalhas de "domingo" são usados sempre que possível para horror da minha mãe. Ficam cá impecáveis para quê? Para os meus filhos que se calhar já não lhes ligam nenhuma?
    Gozemos as coisas de que gostamos enquanto somos vivos e temos saúde.
    Beijocas e sê feliz

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    1. Não pares de "sujar" essas toalhas e as outras da tua vida.

      beijos e sê feliz.

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  18. Nao consegui evitar a lagrima. Tambem eu sou a unica amiga de um prototipo assim uma vez que o teu ja se foi. Nao me afastei porque nao existe ninguem para me substituir, ninguem confiavel e que oica tanto disparate, que ature tanta arrogancia, ...desinteressadamente.
    Paz a sua alma porque ela nunca viveu em paz.
    Bjs

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  19. Uma forma de escrever tão peculiar, capaz de prender o leitor desde a primeira letra até ao derradeiro ponto final.
    Absolutamente genial a tua forma de contar histórias.
    Faz-me sempre recordar um contador de histórias.
    Parabéns e obrigada pela bela oprtunidadde que é ler este blogue.

    beijinhos

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    1. Queria agradecer-te com um nome. Infelizmente não é possível mas deixo-te um grande obrigado e um beijo.

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  20. É a isto que se chama por o dedo na ferida, não?
    Parabéns Bruno, mais um texto inesquécivel.
    Obrigada.

    Bom fim de semana.
    jinhossssss

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    1. Quis meter a mão toda na ferida. Quis que se pense naquilo que fazemos errado e naquilo que nos desvia do caminho certo.

      Beijos e bom fim-de-semana.

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  21. Infelizmente este é o espelho da grande maioria da nossa sociedade.

    Beijinhos

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  22. Fatos caros? Nao tenho nenhum xD

    Mas é uma bela estoria!

    Abraço

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  23. Excelente texto, excelente metáfora. Parabéns por essa capacidade. Abraço

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  24. "Este senhor peculiar que conheci chamava-se povo. E tem milhões de irmãos que ainda andam por aí a viver da mesma forma que ele vivia" . Excelente, é isso mesmo HSB!Fantástica analogia!!!

    Bom fim de semana .
    Beijinho

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  25. não faltam aí pessoas assim, grande moral que nos deixaste!

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  26. Está excelente! E, retrata a realidade portuguesa.A mesquinhez, inveja de muitas pessoas!!

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  27. Adorei o post! Muito bom!
    Felizmente os princípios que os meus pais ainda hoje me vão recordando é que devemos ajudar os outros no momento em que realmente precisam, devemos apreciar e acarinhar as pessoas enquanto estão vivas e apreciar os bons momentos enquanto temos vida e saúde. Tento seguir isto todos os dias. Um bom fim de semana.

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  28. Brilhante!

    É a única coisa que posso dizer!

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  29. Post genial, continua a escrever assim :)

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