Já sem whisky no copo, onde restavam apenas as duas pedras de gelo que não tinham tido tempo de derreter antes de acabar com a bebida, e depois de dois cafés, um hábito que tinha nas ocasiões em que bebia aquilo a que chamava de “sobremesa escocesa”, João preparava-se para ir para casa. “Vou embora puto que amanhã é dia de trabalho”, disse a Carlitos. “Quanto te devo?”, perguntou. “Esquece lá isso. Depois do que me contaste quase que sinto a obrigação de te oferecer aquilo que consumiste”, brincou Carlitos. “Obrigado”, disse acompanhado de um aperto de mão e abraço ao amigo.
A caminho de casa, os pensamentos dividiam-se entre o desejo de encontrar Sophia e as inesperadas palavras de Daniela. Era nisto que pensava, com maior incidência na vontade de voltar a estar perto da mulher com quem tinha estado apenas uma vez do que no desabafo de uma mulher que não era mais do que um episódio antigo e um capítulo encerrado da sua vida. “Como é que te encontro?”, perguntava a si mesmo a cada passo que dava. Até que começou a chover. A intensidade era fraca mas suficiente para João olhar para cima e desabafar. “O que mais falta acontecer?”, perguntou. Ainda as palavras não tinham acabado de sair da sua boca e a chuva aumentava de intensidade, passando de umas meras gotas que mal molham para uma quantidade de água suficiente para encharcar a roupa que trazia vestida.
Sem outra opção, e também porque a distância não era assim tão longa, João abriu o passo para chegar a casa. À medida que aumentava a intensidade da chuva, aumentava também a intensidade da sua passada que em pouco tempo deu lugar a corrida. E foi com a batida do coração acelerada que chegou ao prédio onde pode proteger-se da chuva que se fazia sentir aproveitando também para retomar a respiração normal. Foi então que levou a mão ao bolso direito das calças de ganga para retirar a chave de casa. Assim que colocou a mão direita no bolso sentiu a chave do carro que usava sem porta-chaves. “Nem me lembrava que tinha levado o carro para o café”, disse, começando imediatamente a sorrir. “Vou lá buscar o carro amanhã”, acrescentou já com as chave de casa na mão e enquanto limpava a água da roupa.
Já em casa, Bauer olhou para si com um olhar que desafiava um passeio nocturno. “Não olhes assim para mim. Está de chuva e vais sujar-te todo. Desculpa mas não te levo à rua”, explicou a Bauer que baixou a cabeça antes de se encaminhar para a sala, subindo para o sofá onde esperava a companhia do dono. Minutos depois João chegava ao sofá. “Vamos ver um filme?”, perguntou ao cão. “Que achas de Entre Inimigos?”, acrescentou como se estivesse a falar com alguém que iria escolher o filme a ver. Já o filme levava 23 minutos quando João voltou a dirigir-se a Bauer. “O DiCaprio já merecia um Oscar, não achas?”, disse com uma voz ensonada que não foi suficiente para acordar Bauer que já ressonava no sofá. Menos de dez minutos depois João também já estava num sono profundo.
Os ponteiros do relógio estavam a caminho das três da manhã quando João acordou atordoado sem perceber que dia era. Minutos depois percebia que a manhã de segunda-feira estava à porta e que era melhor ir para a cama. Com um olho fechado e outro aberto, percorreu a distância que separa o sofá da sua cama no triplo do tempo necessário, num percurso que foi acompanhado na sua totalidade por Bauer. Já na cama teve o discernimento de colocar o despertador para as sete da manhã. E o discernimento necessário para antecipar o acordar em meia hora a contar com o tempo necessário para ir buscar o carro que tinha ficado perto do café do amigo.
Quando o despertador tocou, João praguejou, como era hábito nas manhãs de segunda-feira. “Odeio este dia”, disse enquanto esfregava os olhos. Com receio de se atrasar, saltou de imediato da cama e despachou-se. Antes de ir buscar o carro teve ainda tempo para passar na papelaria habitual para comprar A Bola, jornal que gosta de ler ao pequeno-almoço. Já no café habitual, pediu uma torrada em pão alentejano com manteiga apenas de um dos lados do pão e uma meia de leite morna. Com que se deliciou enquanto devorava as páginas do desportivo ficando a par das últimas do mundo do desporto, nomeadamente do futebol, o desporto que mais acompanha.
Às 9h30 em ponto chegava ao trabalho. Pouco tempo depois estava na sua secretária. Apesar do seu departamento estar praticamente despido de gente, já tinha os headphones colocados, deliciando com as músicas de Wanted on Voyage, o álbum de estreia de George Ezra. A música era a fórmula encontrada para se afastar do ambiente do local de trabalho. Às 11h31 chegava o seu chefe. Que mal tinha entrado no escritório já estava a falar para si. “Vê lá se tiras essa porcaria dos ouvidos que estou a falar contigo”, disse-lhe. “Tenho isto nos ouvidos mas estou a ouvir-te. Não tenho o volume alto e não sabia que era proibido ouvir música durante o expediente”, referiu João.
“Não estou para te aturar. Vê lá é se me dás a merda do relatório que te pedi na sexta-feira à tarde e que nunca mais me envias. Deve ser a música que te atrapalha”, disse o chefe num misto de ironia e raiva. “Em primeiro lugar a música não me atrapalha. Existem vozes que me atrapalham mas essas não me fazem companhia na música. Depois, já viste o teu email? É que enviei-te a merda, como dizes, do relatório na sexta-feira”, argumentou João. “Ainda não vi o email. Não sabia disso”, referiu o chefe sem perder a postura de chefe que sabe tudo e tem sempre razão.
“Olha e sabes uma coisa. Quem não está para te aturar nem as tuas merdas sou eu. És um chefe intragável e estou farto de ti. Por isso, vai à merda e arranja outra pessoa para o meu lugar”, soltou João num tom de voz mais elevado enquanto arrumava as coisas para se ir embora. “João, não é preciso reagires assim. Tive um fim-de-semana complicado”, justificou o chefe. “Se não ouviste bem, volto a dizer, vai à merda”, reforçou voltando costas ao chefe e encaminhando-se para a saída do escritório perante o olhar de espanto dos colegas.