29.4.13

deixar de acreditar no amor


Ela acorda como se tivesse chegado a hora de sair da cama e enfrentar mais um dia de trabalho. Sente-se desperta como sempre acontece. E saberá que não voltará a adormecer. Porém, o relógio marca apenas 3:23 da madrugada. No mesmo prédio e no andar de cima, mora ele. Neste aspecto são diferentes. Ele dorme a noite toda que nem uma pedra. E tem três despertadores diferentes, com sons completamente distintos de modo a levantar-se na hora que estipulou para que nunca se atrase. Vizinhos. Diferentes no sono. E com muito mais em comum do que imaginam...

Ao saber que não voltará a dormir, ela entrega-se às constantes rotinas de meio da noite. Calmamente, para não incomodar os vizinhos, desloca-se até à sala. Este curto percurso de pouco mais de dez passos é pautado pelo som que os seus pés fazem quando pisam os papéis (que embrulham os chocolates) que estão espalhado pela casa. Sem conseguir dormir, senta-se no sofá. Tapa-se com a manta que tem há anos. E liga a televisão. Após um rápido zapping não encontra nenhum programa que capte a sua atenção. Como tal, e num gesto tão comum que nem se apercebe, liga o leitor de dvd. Lá dentro, está o Diário de Bridget Jones – o primeiro, de 2001 pois só gosta desse. Que arranca sempre na mesma parte. No momento em que Renée Zellweger bebe vinho, fuma um cigarro enquanto assiste, sozinha no sofá, a uma série e canta All by Myself. Nesse momento, ela percebe que a sua vida é bastante semelhante ao filme. E chora à mesma velocidade que o peso aumenta devido aos chocolates e gelados que fazem parte da sua deficiente alimentação diária.

Já ele é diferente. Dorme bem de noite. Tem um emprego estável numa grande empresa e com um bom ordenado. Além disso ainda tem direito a carro da empresa e cartão de crédito com um plafond de dois mil euros que podem ser gastos naquilo que bem entender. Tal como ela, ele também tem rotinas. Vai diariamente ao ginásio após mais um dia de trabalho. Como não sabe cozinhar e vive sozinho, janta sempre no mesmo restaurante perto de casa. Aliás, já tem o seu lugar reservado. Tem sempre a sua mesa com apenas uma cadeira. Apesar da boa relação com o dono do restaurante, este nunca teve coragem de lhe perguntar porque vai ali há anos sempre sozinho. Quando acaba o jantar, na sua maior parte da vezes um bitoque, vai ao bar do costume. Assim que chega ao balcão já tem à sua espera o whisky, da marca do costume, com duas pedras de gelo. Boa noite e obrigado são as únicas coisas que saem da sua boca. Paga a bebida, deixa sempre dinheiro a mais, e segue até à próxima paragem. Aqui, a rotina não entra, pois escolhe sempre ao acaso o bar de strip onde vai.

Contudo, aquilo que acontece lá dentro é sempre igual. Sendo bem parecido e com um corpo atlético, rapidamente tem uma stipper ao seu lado. Pouco mais de um minuto é o tempo necessário para que sigam para o privado. Nesse momento, faz sempre o mesmo. Tenta convencer a stripper a acabar a noite em sua casa. Umas dizem que não. Outras dizem que queriam mas que não podem. E existem aquelas que dizem o preço da aventura ao domicílio. E não há noite em que não encontre uma destas, não fosse esse o seu único objectivo. Já em sua casa, seguem-se cerca de trinta minutos do chamado amor de 200 euros, o preço que habitualmente paga pelos minutos de sexo. No final, cai sempre a máscara de homem forte sem sentimentos. E pergunta quase sempre se querem ficar o resto da noite com ele. As respostas são sempre iguais. “Não posso” ou “fico se me deres mais 200 euros.” A última rotina do seu dia, que acontece por volta das 01h23 da manhã, não se altera. E passa por chorar até adormecer.

Mais do que partilhar o prédio, ela e ele partilham a visão que têm do amor. Ambos foram magoados na única relação séria que tiveram. E ambos disseram que tal não voltaria a acontecer. Como resultado dessa decisão, fecharam o coração ao mundo. Ela entrega o seu amor aos filmes e músicas lamechas enquanto devora chocolates como se o mundo fosse acabar em poucos minutos e só sobrevivesse quem tivesse ingerido mais doces. Ele, entregou o seu amor a mulheres que não o magoam e que não fazem perguntas. Mas há mais coincidências. Para eles, o amor (ou a hipótese de tentar a felicidade) esteve sempre ali. Ela sempre gostou dele. Diz, quer dizer, pensa que ele é o homem mais charmoso que alguma vez viu. Mas nunca o convidou para sair. Acha que ele não gosta dela e que a acha gorda. Além disso, pensa que ele deve ser um cabrão igual ao ex-namorado. Por sua vez, ele sonha com ela pois nunca viu uma mulher tão bela e sexy em toda a sua vida. Mas, nunca a convidou para sair. Porque acha que ela certamente já terá reparado nas diferentes mulheres que com ele chegam ao prédio. Mais. Ela de certeza que é igual à cabra com quem namorou vários anos. Para ambos, uma hipótese de felicidade, mesmo que remota, está separada apenas por alguns metros. Mas a descrença no amor é tanta que estão cegos e não conseguem reparar nela.   

61 comentários:

  1. Já sigo o teu blog há muito tempo, já aqui li de tudo e mais um bocado, mas neste momento consigo afirmar com toda a certeza que este foi um dos posts que mais gostei.

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  2. Muito bem escrito...e fugiste ao estereotipo dos finais felizes, e assim cada leitor pode imaginar ou descrever aqui o final que gostariam ou achariam q iria acontecer!

    No meu caso acho que provavelmente ele vai apanhar alguma doença venerea e ela diabetes ou obesidade morbida...mas isto sou eu que tenho problemas xD

    Abraço

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    1. Eu acho é que são duas pessoas muito comuns na sociedade. E não quero dizer que todas as pessoas comem chocolates ou recorrem à prostituição.

      Abraço

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  3. Deve ser meio triste não sentir o coração a bater mais forte por outra pessoa.

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    1. Não será ainda mais triste fazer tudo para que ele não bata?

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    2. HSB, é. Mas por vezes é mais simples parar de sentir.

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    3. Prefiro a dor do desgosto à dor da ausência de amor.

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  4. Num dia normal e por acaso do destino falam. Dessa conversa vem um jantar. Desse jantar vem algo mais. Quando finalmente estão a baixar a guarda e a preparar-se para voltar a amar, um deles morre tragicamente.

    É isto...

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  5. e este texto deixou-me colada até à última palavra! Parabéns! Adorei!!!

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  6. uma história de desencontros...
    com tanto em comum entre os mesmos.
    adorei. :)

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  7. E quanto dificil se torna encontrar, de novo, o caminho do amor...

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    1. O mais complicado é quando a pessoa não quer redescobrir o caminho...

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  8. Gostei muito deste texto!

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  9. Quando se realmente se ama é muito dificil voltar a actreditar...Infelizmente ainda tenho esta visão.
    Adorei o texto. Revela muito a vivência de muito de nós, do nosso quotidiano e das nossas relações interpessoais...

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    1. Mas a vida não faz uma pausa. E há oportunidades que não voltam...

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  10. Este texto está brilhante...infelizmente descreve a vida de muita gente! Tenho pena que tanta gente deixe de acreditar no amor!

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    1. Descreve mesmo a vida de muita gente. Ninguém deve deixar de acreditar no amor.

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  11. Gostei muito muito deste texto! Parabéns!

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  12. Bem, uma relação entre vizinhos tem as suas vantagens. Não se apanha transito...não há desculpas para chegar atrasado... pelo cheiro dos cozinhados que emana pelo prédio fora já conhecem os seus pratos preferidos... a expressão "na tua casa ou na minha" ganha novo sentido e se zangarem de madrugada é só subir/descer as escadas. :P

    Agora a sério: após o fim de uma relação é normal haver aquele período de "luto" em que não se quer ver/ouvir falar do sexo oposto...depois com o tempo as feridas curam...não se deve fechar a porta ao amor mas também não há qualquer problema em se estar sozinho por algum tempo...antes só que mal acompanhado.

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    1. Gosto desse prós e contras :)

      Concordo com esse luto desde que a pessoa não se deixe controlar por ele.

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  13. Tá lindo, dá-me vontade de ter perguntar a morada das personagens, para ir a correr contar-lhes ;)
    Obgda

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    1. De certeza que conheces personagens destas mesmo que não comam chocolates nem frequentes bares de strip ;)

      Obrigado eu.

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  14. Eu também já tive uma fase de descrença no amor. E nessa fase, fui sem dúvida uma pessoa pior, mais vazia, descrente em tudo e em todos. Fiz coisas de que não me orgulho, mas das quais não me arrependo, pelo simples facto de me terem feito crescer.

    Hoje, voltei a encontrar o amor e sou feliz :)

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    1. O caminho é esse Roger. E que tem a humildade de dizer aquilo que disseste é porque vai no bom caminho.

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  15. Belíssimo enredo, muito bem (d)escrito.

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  16. Acho que há pessoas "desencontradas" na vida, não sei se por falta de coragem, se por teimosia ou porque as feridas nunca sararem.Fecham a porta ao amor porque nunca desculparam a si próprios, aos outros,à vida, sei lá.. O perdão às vezes é bálsamo nunca encontrado por uns ou por medo ou por orgulho. Enclausuram-se na própria rigidez. Sinceramente foi isto que achei ao ler esta história tão bem contada, qualquer que seja o desfecho. Que sirva de reflexão para muitos que assim passam pela vida sem viverem, por desacreditarem a certa altura no amor ao outros, até nas relações interpessoais, até penso que essencialmente desacreditam no amor a eles próprios e vão sobrevivendo.
    Parabéns mais uma vez por este excelente texto.

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    1. Acho que dizes tudo aquilo que me passou pela cabeça antes e durante a escrita do texto.

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  17. Já não me agarravas assim a um texto teu há uns dias!
    5*! Muito bem escrito. Fizeste-me recuar aos meus 22 anos, ao meu luto, de abandono de mim, de falta de vontade de existir,ao momento em que eu disse para mim mesma que não queria voltar a amar, para não voltar a sofrer.
    Foram quase dois anos. Aos 24 conheci MorMeu que também se encontrava de luto, depois vivemos um periodo muito "engraçado" juntos, com os dois sempre a negar aquilo que estavamos a sentir. Até hoje ainda não me arrependi de ter dado uma oportunidade ao meu coração de voltar a amar, só que desta vez totalmente correspondida e isso sim para mim era a novidade, ser amada. Até então nunca ninguém me tinha explicado que era preciso que eu aprende-se a gostar de mim. MorMeu mostrou-me o caminho e ainda hoje não me larga a mão e sempre que tendo a esquecer-me de mim, é ele que me segura o queixo e me faz erguer a cabeça, olhando o caminho de frente.


    jinhossss

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    1. Ainda bem que ficaste presa.

      Ainda bem que te fiz recuar no tempo. E, melhor do que isso, é o facto de teres passado por algo semelhante e por seres o exemplo de que vale a pena acreditar no amor.

      Parabéns aos dois, pela vossa história de amor.

      beijos

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  18. Há algum tempo que sigo o teu blog e este foi talvez o texto de que mais gostei. Infelizmente é a realidade para algumas pessoas... eu incluida...
    Quando se fecha o coração ao mundo é mt dificil voltar a abri-lo.

    Parabéns, adorei

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    1. Muito obrigado pelas tuas palavras.

      E, neste caso, espero que te ajude a abrir o coração ao tal "vizinho" com quem te cruzas :)

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  19. :-) este post arrancou-me um sorriso. A minha história acabou um "bocadinho" diferente com o vizinho :-D Linkei-o, espero que não te importes.

    Beijo

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    1. Não há problema nenhum com o link. Obrigado.

      Ainda bem que a tua história é diferente.

      beijos

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  20. por vezes, o amor é, mesmo, um lugar estranho ...

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  21. Só para contrariar acho péssimo o teu texto. Só assim... porque me apeteceu.

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    1. É uma opinião tão válida como qualquer outra aqui deixada.

      Obrigado-

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  22. Fiquei parada a ler o texto, não consegui tirar os olhos dele... Está fantástico.

    Um retrato tao cru e duro, de uma realidade tão frágil e verdadeira na nossa sociedade. Por vezes não é deixar de acreditar no amor... é não querer percorrer uma caminhada longa e dolorosa, é fugir do amor com medo desse percurso e acreditar que um dia ele aparece e simplesmente tudo acontece sem magoar e voltamos a ter borboletas no estomago.

    Eu acredito que um dia as borboletas vão regressar ao meu.

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    1. Tens muita razão naquilo que dizes.

      E se tu acreditas, eu tenho a certeza :)

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  23. wow!
    Estou maravilhada. E com um sorriso parvo à meia hora.
    Parabéns ;)

    * romântica que sou, para mim, eles conseguiram sair da zona de conforto e acabaram juntos.

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    1. É bom saber que te deixei a sorrir. É muito bom mesmo.

      Obrigado Andreia :)

      E tal como tu, acredito em finais felizes.

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  24. Acreditem em finais felizes, acreditem porque eles existem... :-)

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  25. eu ainda ando desacreditada......

    belo texto*

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