Hoje, às 18h30 Pierre Aderne actua na Fnac do Chiado. Ao deparar-me com esta notícia lembrei-me de que a minha primeira vez, enquanto jornalista, foi com este artista brasileiro. Pierre Aderne foi a primeira pessoa que entrevistei. Um dia antes da nossa conversa, que durou cerca de uma hora, assisti ao concerto que deu, no Pavilhão Atlântico, onde fez a primeira parte do espectáculo de Ben Harper. Recordo-me, como se fosse hoje, dessa conversa. Da sala, do fluir das palavras, da troca de sorrisos e da tentativa de esconder que era a minha primeira entrevista. No final, confessei que nunca tinha entrevistado ninguém e que estava a dar os primeiros passos nesta vida. O cantor ficou surpreendido e disse estar feliz por ser o meu primeiro, fazendo questão de o referir numa dedicatória feita no álbum que me ofereceu.
Vários anos depois, ou seja, hoje, voltei a ler a minha primeira entrevista. E fiquei feliz. Percebi que não mudei. Tenho mais experiência mas continuo a ser o puto que vasculha tudo o que há para descobrir sobre o entrevistado, quer seja o mais importante do mundo ou alguém que um país desconhece. E sinto orgulho em ser assim. Naquilo que faço, na forma como faço, respeitando sempre quem se senta à minha frente.
Como a emoção acabou por me dominar, por ter sido a primeira vez, e por muitos outros aspectos, decidi partilhar a minha primeira entrevista, sem cortes e truques de “maquilhagem” que a transformem. Pura e no seu todo, ou seja, completamente diferente da que foi publicada. Espero que gostem e sobretudo que descubram Pierre Aderne, um artista diferente da generalidade.
“Remédio para o tédio e para a solidão”
Pierre Aderne é um dos novos nomes da música brasileira. Casa de Praia é o seu novo álbum e pela primeira vez na sua carreira tem um disco à venda nas lojas.
Como se iniciou a sua carreira?
Foi mais ou menos como água a ferver, imediato e inevitável. Estava a tirar o curso de educação física só que tive uma surpresa quando ia para uma aula. No carro ouvi “Vital e sua mota” dos Paralamas do Sucesso e senti que podia comunicar através da música. Nessa altura já escrevia e brincava com o meu violão. Passada uma semana já tinha saído da faculdade, feito a minha primeira banda (Habeas Corpus) e um mês depois já estava no palco.
Desde a época da primeira banda, o que mudou?
O que aconteceu nesse caminho todo foi que comecei a olhar para vários caminhos dentro da música para depois perceber que para ser gente grande é fundamental lembrar como é ser adolescente. Hoje, sinto a mesma frescura de quando comecei a fazer música pelo facto de ter visitado todos esses caminhos mais complicados dentro da busca perfeita e, com este disco cheguei ao caminho inicial. Consigo ver na música que faço o meu DNA lá de trás. Curiosamente, estou num momento parecido com o do início da minha carreira.
Olhando para trás, sente-se realizado com o seu percurso?
Bastante. Sempre tive na minha cabeça a vontade de amplificar esse meu quartinho de onde saem as composições, as ideias e usando esse amplificador de grande alcance (musica), a minha preocupação foi sempre não desvirtuar esse núcleo inicial. Estou bastante feliz com esse resultado. Consegui através do “Casa de Praia” a minha certidão de nascimento musical.
Porquê o nome “Casa de Praia”?
A matéria-prima dessa receita que não é nem tijolo nem telhado (risos) mas sensações, está dentro desse formato. A metáfora mais próxima desse conteúdo todo que está lá dentro seria esse nome. Seria um lugar de tranquilidade para que eu pudesse ficar lá com a minha rede balançando, fazendo uma ponte entre João Gilberto e Caetano Veloso. Casa de Praia sintetiza muito bem todos os ingredientes que foram usados na receita do disco.
A praia é a sua grande fonte de inspiração para compor as músicas?
A música Casa de Praia, que é a música título, foi composta na praia, em Ipanema (Posto 9) que fica a 50 metros da minha casa. No meio de um país com um povo que circula com tantas diferenças e que ainda consegue ter um sorriso na cara, qual é motivo disso? Certamente são as coisas que interessam a cada um de nós. Procurei falar delas e, quase todas, no momento da construção de Casa de Praia estavam no mar que é onde a gente dissipa toda e qualquer desigualdade, frustração e se coloca em total igualdade de condição com qualquer um.
Este novo álbum é claramente intimista. Quais as suas referências musicais?
O álbum tem o espírito bossa nova que vem do João Gilberto. Da parte da interpretação tem muito a onda do João Gilberto, como cantor autor eu bebi muito na fonte de Chico Buarque e Caetano Veloso que foi o que eu escutei na minha infância. Na parte de compositor, como o meu pai é português e professor de literatura e filosofia, tinha hábito de ler alguns poetas portugueses na hora do almoço, como Florbela Espanca, Fernando Pessoa e José Régio. Fernando Pessoa tem uma grande influência na minha forma simples de escrever, de sintetizar sensações, daquele mar que esta sempre presente na obra de Fernando Pessoa.
Se tivesse oportunidade de entrevistar a sua maior referência musical qual seria a primeira pergunta que lhe colocava?
Boa pergunta. (pausa para pensar) É uma preocupação para o futuro, perguntava ao Caetano, como consegue cantar Leãozinho com a mesma frescura do início de carreira. Cada vez que ele canta é como se estivesse a cantar pela primeira vez, acho curioso.
Como descrevia a sua música a uma pessoa que nunca a tenha ouvido?
É uma canção de ninar para adultos que não dá sono mas que faz sonhar (risos).
Os seus primeiros trabalhos foram feitos de forma independente e com distribuição alternativa, porquê?
Tive um disco que não foi lançado, isso naquela altura mexeu muito comigo. Sempre fui, desde criança, muito preocupado com as injustiças. Quando trataram o meu primeiro disco como se fosse um sabonete e não um disco redondo que traz sonhos, vida, emoção e historias fiquei muito magoado e nunca aceitei o não. O lançamento independente foi uma alternativa, daí a ideia de fazer o circuito das bancas de jornal que são 27000 pontos de venda deixando a música mais perto do consumidor. Todos os discos que fiz antes do Casa de Praia não tinham qualquer interesse comercial, como se não tivesse sido a minha estreia artística, foram momentos de laboratório. Foi por isso que procurei alternativas como as bancas, o livre download na internet e o CD-Ingresso (quem compra o bilhete para o concerto tem direito ao CD). Todas essas são formas alternativas de levar a música aos ouvidos das pessoas, é como se você tivesse dando uma rádio para cada um e ele decide a que horas é que escuta.
Pela primeira vez as pessoas podem encontrar o seu CD numa loja, porque só agora?
Primeiro, é importantíssimo você ter o domínio da sua obra e de achar parceiros certos. Senti a necessidade de compartilhar o Casa de Praia com o maior número de ouvidos possíveis. O que mais importa é a sua arte chegar ás pessoas porque a revolução que ela pode fazer é capaz de mudar uma vida como mudou a minha depois de ter ouvido “Vital e a sua mota” na rádio. Se fosse um artista independente e não tivesse tido a oportunidade de ter um núcleo de 120 pessoas a pensar em formas de divulgar a sua música, eu não a teria escutado e não me teria feito tão bem. O conselho que dou a todos os artistas independentes é que não aceitem o não, para irem com a sua arte em frente. Agora, ter uma estrutura pensando 24 horas por dia na sua música é genial.
Como surgiu a ideia de comercializar o seu CD no Japão?
É igual à história do astronauta que só percebe que a Terra é redonda quando está em órbita. Quando fiz o Casa de Praia não tinha noção do que aquilo era para mim. Um dia fui a um show do David Byrne no Canecão, uma das casas de espectáculos mais famosas do Rio de Janeiro, com a ideia de lhe entregar uma cópia do meu CD. Quando ele saiu, apresentei-me e dei-lhe um CD que tinha o meu nome e o e-mail. Um mês depois tinha um e-mail que dizia David Byrne – Canecão. Pensei que fosse um anúncio de um novo espectáculo mas era um e-mail dele a dizer que tinha adorado o disco e aquilo me deu um estalo. Começamos a falar e um dia surgiu a ideia do Japão. Fiz uma pesquisa no google por japonese labels, e comecei a entrar nos sites. Visitei um que me chamou à atenção e mandei um e-mail com um link para quatro músicas, encurtando a história, uma semana depois estava com o contrato assinado. Escolheram o meu disco como um dos dez principais ao lado de artistas americanos como é o caso do Jack Johnson. Foi muito bom e já comecei a produzir uma edição especial do álbum exclusiva para o Japão.
Já fez uma música para o cinema (Seja o que Deus quiser – filme de Murilo Salles). É uma experiência a repetir?
Sempre que tiver oportunidade, inclusive em Portugal (risos). Ter a possibilidade de ajudar a contar uma história na tela foi das coisas que me deixou mais feliz na vida.
“Remédio pro tédio e pra solidão/Prescrito pro ouvido, pra boca, pra alma e pro coração”, é assim que idealiza a música?
Essa é minha receita, meu remédio particular da minha farmácia lá de casa (risos).
Na letra de Mais escreve “Não basta ganhar de um a zero/Porque seu time tem sempre de golear? É alguma critica?
É para aquelas pessoas que não ficam satisfeitas com a beleza que já têm no dia-a-dia. Fala desse poço sem fim da carência humana. É um recadinho para uma determinada pessoa (risos) mas é também um recado geral.
Tenta passar alguma mensagem com a letra das suas músicas?
Sim, sempre. Começa sempre com as letras. São a minha motivação inicial.
Um dos seus grandes parceiros na construção do último álbum é Dadi (sete parcerias no álbum). De onde vem essa relação e cumplicidade que vos une? Soube que esta apaixonado por ele.
(risos) Exactamente, apesar da minha promiscuidade musical e de outros parceiros musicais que me encantam. Conheço o Dadi desde criança e sempre observei e gostei de tudo em que ele participava. É o meu ídolo musical das entrelinhas. Só existe ele no meio musical, é único, tem uma espontaneidade absurda, musicalmente é uma criança, nada académico, surpreendente com harmonias muito simples. Foi a parceria perfeita, este disco é quase de parceria com o Dadi, se não o tivesse dentro do estúdio, certamente não teria chegado a este resultado. Espero continuar não só a compor com ele mas também a produzir os meus álbuns.
Disse que umas das razões do insucesso do projecto Panela Music (primeira editora que criou) foi o facto de ser um sonhador, um romântico que sempre teve olhos, ouvidos e mente virados para a música, continua a sentir o mesmo?
O dia que eu parar de sentir isso a musica também não me vai fazer mais sentido, não vai estar mais comigo.
Naquela altura chegou a pensar abandonar o mundo da música?
Não, eu sempre fui muito guerreiro, sempre soube que no momento certo tudo ia acontecer, nunca perdi a fé. A música nunca deixou de acontecer, nem que fosse no meu quarto, todas as vezes que eu tinha aquele momento de reflexão estava bem e a música continua a ser a minha grande companheira na vida até hoje.
Tem a sua própria editora (Santa Música). É difícil separar o Pierre empresário do Pierre artista?
É difícil não para mim. É difícil para as pessoas que me cercam, têm muita dificuldade em entender isso, tenho que ajudar quem esta do meu lado a entender o que é a minha música, com a preocupação que ela não seja tratada como um produto mas como um sonho. O que eu faço com o meu lado empresário é minimizar essa distância entre uma coisa e a outra e possibilitar que, caso um dia tenha outra pedra no caminho, certamente vou usar todas as minhas forças e experiência nessa empreitada para ajudar a elevar a boa musica, seja ela de quem for.
Foi o responsável por projectos alternativos de sucesso, como os CDs de hinos de clubes de futebol e os CDs religiosos do Cid Moreira. Como surgiu a ideia desses projectos?
Foi mais uma coisa para provar que eles estavam todos errados e que a gente podia chegar a resultados absurdos de números incríveis de venda, com criatividade. As musicas mais famosas no Brasil não são do Caetano Veloso nem do Chico Buarque, são do Lamartine Babo que em 1950 compôs os quatro hinos do dos maiores clubes cariocas (Vasco da Gama, Flamengo, Fluminense e Botafogo). Essas musicas nunca tinham sido regravadas desde 1950. Eu fazia parte de um projecto para conter a violência nos estádios de futebol e chamei 42 artistas da música brasileira para gravar os hinos de futebol. Foi lançado em bancas de jornal e foi disco de platina, que na época eram 250000 exemplares, em 24horas. Foi mais uma birra minha com a indústria. O que eu sempre quis fazer foi estar perto da minha música e se fosse preciso ir a campo procurar soluções para que ela acontecesse, iria e foi o que fiz. Com o Cid Moreira surgiu a ideia de que eu realizasse musicalmente esse projecto para ele, como se fosse uma banda sonora. Ficou belíssimo, interessante artisticamente e ajudei também na distribuição nas bancas de jornal.
É complicado actuar num concerto em que a maior parte das pessoas vão lá por causa de outro artista?
Sempre gostei de desafios, acho que o ser humano é movido por esses desafios. Não existem barreiras entre a vontade e o sonho. Peguei na minha música desde o primeiro acorde e falei com os meus dois músicos que o que mais importava era a nossa energia com aquelas 12000 pessoas. Esquecer a parte técnica, esquecer que os acordes podiam não sair, que o som podia não ser o ideal, e aceitar com muita dignidade a oportunidade de ser convidado do Ben Harper. Senti-me confortável, com o frio na barriga o tempo todo (risos). Foi fabuloso, o momento mais importante da minha carreira até hoje.
Como sentiu o publico no concerto?
Do palco, para mim, estava lindo (risos). Senti que teve um retorno muito bacano, tendo cantado junto comigo. Vi-me ali naquele belo navio de cabeça para baixo com o meu violão levando as minhas músicas para aquela multidão e o retorno foi muito bacano.
No concerto disse que a vida é muito mais do que um tecto e um salário. O que é para si a vida?
A vida para mim é sonho, acho que o amor e o sonho vêem mais do que olhos, para mim é isso, não parar de sonhar nunca. É o acreditar no que quer e começar a agir. A acção é que faz a vontade ver a verdade. É esse o meu lema.
O que achou do concerto do Ben Harper?
Achei fantástico, muito bom ele não se prender a um formato comercial de uma hora e meia. Senti que ele se diverte com os músicos, acho ousado. Teve dois momentos, um mais pesado e outro mais acústico. No mais acústico é onde ele me fala mais apesar de ser extremamente poderoso esse momento mais Rock n Roll. É um grande cantor, musico, comunicador e autor. Ter esses elementos num só artista é dificílimo.
Como imagina um concerto perfeito?
É aquele que não se priva do erro, é o trapezista sem rede. Chateia-me muito quando eu vou num show e é previsível. Para ver um show certinho, bonitinho em que o artista não esta vulnerável nem um minuto sequer eu prefiro ficar em casa ouvindo o CD ou vendo o DVD. A possibilidade de errar e arriscar, para mim é o show, sempre.
Quais os seus projectos para o futuro?
Por agora compor para alguns artistas no Brasil. Esta vinda a Portugal foi importante para beber um pouquinho nessa fonte da literatura portuguesa que é a língua que eu canto. Quanto mais me aprofundar nela melhor será a minha música. O CD do Japão vai ser uma sequência do Casa de Praia, talvez um pouco mais alinhado para música popular brasileira. A música título desse disco já esta composta e é isso, continuar fazendo música, jogando bola (risos).
Mais uma boa partilha! E é sempre bom recordar:)
ResponderEliminarObrigado :) Eu adorei recordar a entrevista
EliminarHSB o entrevistado ajudou, por aquilo que escreves é além de artista, um belo ser humano e um bom comunicador e quando é assim deve ser um bocadinho mais fácil..
ResponderEliminarParabéns parece-me uma excelente primeira vez :)
Foi uma primeira vez para não esquecer :)
EliminarO Pierre Aderne é daquelas pessoas com quem se pode falar horas sem aborrecer.
Começaste muito bem :) Parabéns!
ResponderEliminarObrigado Sofia :)
EliminarEssa era uma das partes que gostava de ter seguido jornalismo: conhecemos imensas pessoas, partilha-se experiências... E a parte televisiva deixou-me bastante interessada, pq dps tirei um curso de jornalismo televisivo intensivo, mas vi que era demasiado complicado entrar para o meio. E a parte de rádio, vários professores e colegas tentaram que fizesse algo em rádio q tinha voz e precisava de ser um pouco trabalhada. Mas n segui e pronto!
ResponderEliminarNunca pratiquei jornalismo, só o escolar. Mas gostava de andar de microfone em mão, de gravador em mão. É muito giro estar do outro lado e fazer perguntas. E dps estúdio.Pelo menos era o que me safava... Segui a minha paixão eterna pelo marketing, comunicação (...), e com experiência mais relevante noutra área.
Mas gostei deste relato. Muito bom, para variar.
Temos um bom jornalista, desconhecido, com 5 Estrelinhas Grandinhas. :)
Obrigado G.
EliminarRealmente é um mundo muito bom. Não é encantado mas tem as suas coisas boas. COnhecer o Pierre Aderne foi uma delas :)