Até hoje, fui multado quatro vezes, se a memória não me atraiçoa. Duas por
excesso de velocidade e outras tantas por mau estacionamento. Destas, apenas uma
me tirou do sério. Senti-me injustiçado, acabando por discutir com o agente que
me multou. Recordo-me como se fosse hoje. Estava em Cascais. E conduzia uma
carrinha do emprego que tinha na altura. Estava a fazer um levantamento
informático para a EDP e a minha função passava por fazer um esquema
informático das instalações que existem por todo o país. Por ser uma zona
complicada, estacionei mal a carrinha, apesar de não incomodar a circulação.
Estava a cerca de cinco metros da viatura. Durante uns minutos deixei de olhar
para a carrinha e, quando voltei a olhar estava um polícia a passar uma multa.
Aproximei-me e, com educação, tentei explicar o que estava a fazer, para
quem estava a fazer e a necessidade de ter a carrinha por perto. O agente não
quis saber de nada e até nem o censuro pois a realidade é que estava mal
estacionado. O que me irritou foi quando o senhor interrompeu a nossa conversa
para falar com um jogador de futebol que andava perdido. O pobre rapaz, alto,
magro e de fraca figura não sabia onde eram os correios. O agente ficou todo
inchado por falar com ele. Educado, o jogador pediu desculpa, em inglês, por
estar a interromper, agradeceu e afastou-se. Quando se foi embora, a conversa
deixou de ser calma. Porque, voltei-me para o polícia e disse: “A este não
passavas multa.” Furioso, voltou-se para mim e respondeu com raiva: “Até o
Presidente da República multava.” Ao que eu disse: “A esse nem falas!” Caldo
entornado. Palavra puxa palavra e o agente ameaçou-me, dizendo que a multa do
carro podia não ser a única caso eu não fechasse a boca. Lá me calei e fui à
minha vida.
Este episódio andou perdido na minha memória até ao dia 10 de Novembro de
2009. Nesse dia fiquei chocado ao saber que Robert Enke, antigo guarda-redes do
Benfica, tinha decidido acabar com a vida colocando-se à frente de um comboio.
Assim que li a notícia, esta memória ficou clara na minha cabeça. Porque,
Robert Enke era o jogador que não sabia onde ficavam os correios enquanto eu
era multado. Enquanto a mulher estava no carro, o alemão dirigiu-se ao único
polícia que encontrou para pedir ajuda. E, se não teve problemas em procurar
alguém que soubesse ajuda-lo quando estava perdido, Robert Enke foi incapaz de
procurar ajuda para salvar a própria vida.
Uma Vida Curta Demais é muito mais do que um simples livro de desporto. É
uma obra que revela a intimidade de um homem que vivia num estado de depressão
profunda, iniciada quando era jogador do Barcelona e agravada com a morte de
Lara, a sua filha de apenas dois anos. Uma depressão tão grave que nem a
adopção de outra menina foi suficiente para não perder a força de viver. No
Barcelona, o jogador começou por culpar-se dos erros que o impediram de ser titular
na equipa da Catalunha. O estado era tão grave que, anos mais tarde e apesar do sucesso nos
relvados e do relacionamento perfeito com a mulher, Enke não conseguia sair da
depressão em que se encontrava. “Porquê, porquê agora?”, escreveu no seu diário
que é revelado na obra.
Ronald Reng, autor do livro e amigo pessoal do jogador, revelou ao jornal
Público que era bom que as pessoas percebessem que Enke não se matou
conscientemente, mas que foi a doença que o levou a acabar com a vida. É neste
aspecto que reside a importância deste livro. Mais do que um livro desportivo,
Uma Vida Curta Demais fala sobre uma doença silenciosa que é muito mais do que
aquilo que as pessoas pensam. Uma depressão não é uma tristeza momentânea que
retira a vontade de fazer o que quer que seja a alguém. É uma doença que altera o funcionamento normal do corpo e que, em
casos extremos pode levar à morte. E como doença grave que é, quem sofre de
depressão precisa de ajuda e do apoio de todas as pessoas, apesar da tendência
natural para esconder o que se sente. É um tema grave demais para ser ignorado.
No sentido de alertar para um problema grave, este livro é uma obra que
deve ser lida com bastante atenção. Apesar de já ter dois anos, o livro só
agora é que foi traduzido para português, pela Lua de Papel. A importância do
livro foi reconhecida com o prémio William Hill Sports Book of the Year no ano
passado.
ninguém imagina a dor que uma pessoa deve sentir nessas alturas.
ResponderEliminarMesmo! E muitas vezes nem damos conta.
EliminarNão consigo imaginar o desespero de alguém que se suicida.....
ResponderEliminarAlguem que se atira á frente de um comboio ou dá um tiro a si proprio não procura ajuda/salvação....quer MATAR-SE MESMO!!!
ao contrário do que alguns dizem.....para mim isto é um acto de coragem desesperante....
:( triste....muito triste
Afinal o dinheiro não é tudo.....
Penso da mesma forma. É um acto de coragem. Neste caso, ele tinha tudo para ser feliz. É muito triste.
EliminarA morte chega cedo,
ResponderEliminarPois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.
Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'
Belo poema.
EliminarA falha do nosso cérebro é coisa que ainda me faz confusão. Ainda não compreendo como a nossa cabeça pode pifar e levar-nos a extremos.
ResponderEliminarDeus nos livre desse mal!
E é uma falha que arruína o corpo, por mais saudável que ele seja.
EliminarAi... um tema tao forte como triste, e faz-me lembrar os meus anos negros. Estive tao perto do abismo que para mim cada dia é uma festa digna de celebracao! E nao há frases feitas quando se diz que só quem passa por elas sabe dar valor. É mesmo isso!! E saímos do buraco enormes, com uma forca (é com cedilha, mas eu nao tenho) e uma capacidade de dar a volta por cima que nao é para qualquer um. Venha o que vier, o que passei fez-me mais forte e nao é qualquer pintelho que me abala... :)
ResponderEliminarObrigado pelo teu testemunho e fico feliz por teres vencido essa batalha.
EliminarTenho de ler esse livro.
ResponderEliminarVale a pena!
EliminarEste tema é mesmo muito forte, porque sinceramente acho que hoje em dia é mito fácil atingirmos esse estado...depressivo...e estarmos naquele limiar entre o estar bem e não estar tão bem! O nosso cérebro é enigmático e nunca sabemos quando algo pode começar a funcionar menos bem!
ResponderEliminarMuito recentemente fiquei a saber do caso de um rapaz, novissimo, 22 anos que se suicidou. Supostamente estava num estado depressivo. E independentemente de a vida dele ser aparentemente normal, muitos amigos e extremamente sociável e alegre, escolheu o dia dos seus anos, depois de uma bela festa de aniversário, para cometer essa acção! Dá que pensar!
já passei por situações de vida bem complicadas e consegui superá-las ainda que com muita tristeza e dor, mas realmente o que peço é que o meu cérebro e capacidade de racionalizar e lutar em frente não me falhe, porque acho que todos estamos sujeitos a que isso aconteça!
É verdade. É um problema que pode acontecer a qualquer um. Se a pessoa se isolar é ainda pior.
EliminarÀs vezes olhamos para alguém e achamos que está tudo bem, achamos que é uma pessoa que tem tudo para ser feliz e estar bem... e dentro dessa pessoa vai uma guerra tão grande, que nem quando dorme essa pessoa tem paz.
ResponderEliminarPena não conseguirmos ler os pensamentos das pessoas para tentar dar-lhes a mão.
Tens razão. Era bom que assim fosse.
EliminarAntes de ir ao tema central do teu texto só um aparte, foste multado quatro vezes... é uma desvantagem de ser homem. :)
ResponderEliminarEm relação ao tema central do texto enquanto escrevias sobre o jogador só me ocorriam os nomes de dois génios, entre tantos outros, que viveram também fases de intensa depressão e que nos deixaram tanto, Florbela Espanca e Fernando Pessoa.
“e não haver gestos novos nem palavras novas!”
Se fosse mulher estava safo :) As duas primeiras multas foram com pouco tempo de carta.
EliminarHá muitos génios que passaram por isso.
É impressionante como esta doença é surda. Surda para quem está de fora e que podia ajudar quem precisa!
ResponderEliminar***
Está tudo dito!
Eliminar***
Infelizmente parece-me mais que as pessoas fazem por não querer perceber ...
ResponderEliminarSerá uma espécie de defesa?
EliminarÉ verdade, a depressão é um dos grandes males dos nossos tempos, é uma doença que pode ser muito grave como se pode perceber por este post e por muitas outras histórias que todos nós infelizmente conhecemos. A boa notícia é que é tratável e para tal deve ser denunciada sem vergonhas. A título de curiosidade, é mais difícil para os homens assumirem que estão deprimidos e como tal receberem tratamento em condições. Por tratamento em condições, falo especialmente de ajuda psicológica (os fármacos só mascaram os sintomas).
ResponderEliminarConcordo com o teu texto.
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