20.10.16

cancro. todos sabem tudo, mesmo não sabendo nada

Hoje, como é hábito às quintas-feiras, fui à papelaria do costume antes da hora do almoço. Entrei e o dono estava ao telemóvel. Já lá estava outra pessoa. Passámos a ser dois. Passado um pouco chegou mais um homem. E ainda mais três rapazes. Fui o primeiro a despachar-me e a aproximar-se da caixa. Isto sem contar com o homem que já estava no espaço quando entrei e que percebi tratar-se de um vendedor.

Em condições normais teria ficado chateado com o facto de o dono da papelaria estar a conversar ao telemóvel enquanto tinha clientes na loja. Mas não fiquei minimamente aborrecido. Isto porque foi possível perceber que a chamada era sobre um tema complicado. Percebi que alguém muito próximo do senhor está a lutar contra o cancro. E percebi que a pessoa está num ponto em que pode não resistir a uma operação. Trata-se de alguém que está a ser consumido pela doença. Pelo bicho. E o homem dizia sentir-se impotente perante aquela triste realidade. Dizia também esperar um milagre.

Meio indignado, o homem dizia à pessoa com quem falava – era impossível não ouvir a conversa na papelaria, especialmente para mim que estava num balcão muito perto do senhor – que várias pessoas lhe diziam coisas como “não vais fazer nada?”, “o que vais fazer?” ou “vais ficar a olhar?”. Algo que irritava o homem. “Diz-me o que fazer?”, “Onde vou?”, “O que faço?” ou “Qual o caminho?” são exemplos do que o homem respondia aquelas pessoas.

Infelizmente o cancro fez parte da minha vida num passado que se começa a afastar, com a doença da minha mãe. E tenho a certeza de algumas coisas. Para começar, só um doente oncológico é que sabe o que é ter cancro. Os outros nada sabem. Muitos pensam que imaginam. Mas na realidade ninguém sabe o que é ter uma doença que pode roubar a vida a não ser que tenha passado por isso. Depois existem palpites. Que são feitos por quem nada sabe mas tudo julga saber. Uns falam porque acham que fica bem dizer algo. Outro porque se julgam senhores da razão. Mas são tudo palpites. Nada mais do que isso.

As pessoas deviam pensar duas vezes antes de abrir a boca no momento de abordar um doente oncológico. E isso começa logo no “coitadinho” ou no “tenho pena”. Esqueçam essa merda. Porque as pessoas já sabem que estão doentes e não precisam de pena alheia nem de coitadinhos. Para isso basta terem que lidar, e só eles é que o fazem, com a doença e com os medos inerentes durante 24 horas por dia. Esquecer isto é o primeiro passo.

Depois é as pessoas esquecerem que são donas da razão. Será que alguém que diz “não fazes nada?” a um familiar próximo de um doente oncológico, que está a ser consumido a uma velocidade alucinante por uma doença desta dimensão, tem noção das palavras? Será que acredita que existe alguém disposto a estar de braços cruzados perante uma realidade dolorosa? Será que param para perceber a impotência de quem rodeia um doente oncológico e que já não sabe o que fazer (ou dizer) para que tudo fique bem, dentro da normalidade? Creio que basta pensar um pouco para perceber que existem coisas que não se dizem.

De resto, aconselho todas as pessoas que têm conselhos para os doentes oncológicos (e respectivos familiares próximos) que os apliquem a si e às suas realidades. Que se preocupem em mudar as suas vidas, que tenham certezas absolutas em relação às suas realidades e que alterem aquilo que têm que alterar nas suas vidas. Esqueçam a realidade de um doente oncológico. Esqueçam a dureza de lidar com essa realidade. Porque provavelmente não o vão compreender. E para dizer asneiras mais vale estar com a boca fechada.

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