Se me pedirem, aos 33 anos, para recordar os médicos e profissionais de saúde que me marcaram lembro-me de poucos. Em primeiro lugar recordo o dr. Vítor, que não sendo o meu médico de família, acaba por ainda o ser. Prefiro pagar mais por uma consulta e resolver tudo, desde que possível, com ele que ir ao centro de saúde da minha zona. Depois, recordo a simpática senhora que me coseu o lábio superior no dia em que levei uma cotovelada a jogar futebol que me rasgou o lábio até à gengiva e que me proporcionou um dos piores momentos passados numa marquesa num hospital. Graças a ela e à sua simpatia, os mais de dez pontos foram um passeio no parque e não ficou uma única marca para contar a história. Recordo também, pelo caricato da situação, as cinco enfermeiras que tinham de me agarrar o braço para tirar sangue numa altura em que o hospital era a minha segunda casa.
De resto, e estou a excluir desta conta as pessoas que me acompanharam no tratamento das normais lesões desportivas, não me lembro de ninguém. Uns porque não me marcaram. Outros porque eram ridículos. Outros porque não têm paciência para ser médicos e passar o dia a aturar quem se queixa disto e daquilo. Outros ainda porque foram eficientes mas ao estilo de uma fábrica em que eu era apenas mais uma peça que passava pelo tapete de montagem. Com isto não quero dizer que os médicos têm a obrigação do que ser mais do que aquilo que fazem. E ninguém os pode acusar disso. Aquilo que pretendo dizer é que ser assim faz com que não sejam recordados. Pelo menos por mim.
A partir de agora, devido ao problema da minha mãe, também não esquecerei, por mais dias que viva, o dr. Marco, o médico que tem acompanhado o caso da minha mãe e com quem tive o prazer de jantar no último fim-de-semana. E que partilhou muitas histórias connosco. Para começar deixou sempre claro que não deve existir uma barreira entre o médico e o paciente. Basicamente, porque somos todos pessoas. É certo que são, em alguns casos, as pessoas que criam esta barreira que não tem sentido existir. Foi giro conhecer a história da mulher que era contra os brasileiros e que achava que o médico deveria ser recambiado para o seu país. Curiosamente, acabou nas mãos dele, um brasileiro, e foi ele quem lhe salvou a vida. Foi bom perceber os meandros e bastidores do mundo da medicina. Os porquês de certas coisas que não têm grande lógica – para não dizer nenhuma – mas que existem. Porque dão dinheiro a ganhar a muitas pessoas.
Uma das coisas que mais gostei de ouvir é que a palavra cancro não é dita no seu gabinete. E estou a falar de um homem que lida com cancro diariamente. Se as mulheres quiserem utilizar o termo tudo bem mas se depender dele, aligeira-se sempre um cenário que já tem peso suficiente mesmo sem que o nome seja dito. Eu era daquelas pessoas que achava que dizer cancro era tão normal como beber água. Até que ele bateu à porta da minha mãe e entrou sem pedir licença. A partir desse momento percebi que afinal não é tão fácil dizer cancro. E ainda hoje não digo quando me refiro à minha mãe. É uma merdinha que apareceu e que está a desaparecer, passo a passo, como está a acontecer no preciso momento em que escrevo estas palavras.
Depois de ficar a conhecer melhor o médico que está a ser fundamental no caso da minha mãe e um dos grandes responsáveis pelo seu humor e pela sua força, não tenho dúvidas que são pessoas assim que fazem a diferença no mundo da medicina. São pessoas que são movidas pelo objectivo de salvar vidas. Nada mais do que isso. Tanto que este médico partilha o seu saber com todas as pessoas que desejem aprender. Não quer os “segredos” só para si. E é um médico que se desdobra em consultas e que nunca, repito, NUNCA, deixa uma mulher à porta do seu gabinete sem uma palavra. Pode demorar mas irá falar com a pessoa. Tal como é um médico que quer levar para o hospital, em regime de voluntariado, um serviço que todos os países têm para as doentes oncológicas e que por cá passa despercebido. Para mim, isto é um médico bom e agradeço todos os dias o facto de ter sido colocado à frente da minha mãe.
Mais uma vez, com isto não quero dizer que os outros médicos são maus. A minha mãe poderia ter o mesmo tratamento com um médico sem qualquer sensibilidade para lidar com uma doença grave. O tratamento seria o mesmo. Os resultados também. Mas o processo em si seria completamente diferente. O percurso seria ainda mais doloroso para ela se fosse tratada por um médico robot. E com este médico fiz um dos brindes mais sinceros de sempre: “A uma vida longa e a uma morte súbita”.
Eu também referia-me "à doença" da minha mãe e não "ao cancro", na grande maioria das vezes. Acho que não tenho qualquer problema com o termo, mas era como me sentia mais à vontade.
ResponderEliminarE sim, compreendo, perfeitamente, a questão do relacionamento paciente-médico que falas. Ainda para mais em doenças oncológicas ou semelhantes - que não se tratam, apenas e só, de "coisinhas passageiras", como uma apendicite, ou uma bronquite.
E ao longo dos vários anos que acompanhei a minha mãe, tanto cá, como em Londres, é verdade que existem profissionais para todos os gostos e, em geral, com bastante distanciamento dos doentes. Felizmente existem boas excepções - a minha mãe também teve bons profissionais, no IPO Lisboa que a acompanharam, mas não foi assim desde o início e, creio, é uma classe que deveria melhorar, bastante, ao nível da inteligência emocional. Bem sei que não podem envolver-se nos problemas dos doentes. Mas, a frieza com que alguns desempenham a sua profissão é desconcertante e, em algumas situações, deixa-nos com um (ou os dois) pé atrás.
Uma excelente recuperação para a tua mãe e MUITO ânimo para todos, é fundamental!
Nunca tive problema em dizer cancro até agora. Prefiro não dizer. Não sei explicar mas não o faço. Este tipo de doenças vivem muito da força dos doentes e nesse domínio é indispensável um médico que seja, no mínimo, extraordinário e com força suficiente para animar quem tem medo de tudo e mais alguma coisa.
EliminarA minha mãe não podia ter apanhado um médico melhor e recomendo a todas as mulheres que infelizmente passem pelo mesmo.
Obrigado!
Essa relação médico-paciente que a tua mãe tem a sorte de ter, acho fundamental e devia ser a prática comum...mas confesso-te que a ideia que tenho é que não é. Só posso falar do que vivi e no meu caso pessoal e com a minha mãe verdade seja dita nunca duvidei do profissionalismo, da capacidade e da disponibilidade da equipa médica dela...mas lidei com alguma "insensibilidade" que na altura me chocou e que sempre justifiquei com a tal "carapaça" que os médicos têm de colocar face ao que vivem ...Felizmente a minha mãe era uma pessoa tão positiva e tão boa e generosa que estas coisas que me saltavam à vista (e confesso que interiormente me faziam muita "moça") ela não dava importância...e sempre foi acima de tudo uma pessoa agradecida ao médico dela.
ResponderEliminarÉ mesmo fundamental. É aí que reside um dos principais factores da cura. No meu caso estou descansado porque sei que está em boas mãos.
EliminarConcordo consigo em todos os aspectos, infelizmente a minha filha filha nasceu com uma cardiopatia congénita grave, nas primeiras horas de vida dela, os médicos criaram uma barreira, depois foi transferida para outro hospital, onde aí, os médicos foram nossos amigos e parceiros na luta da minha menina, ela ainda tem um longo caminho a percorrer, mas a realidade é que pude contar com o apoio dos médicos, foram pessoas com muita empatia, que nos deram os seus ombros para poder-mos chorar. Por isso faço minhas, as suas palavras :)
ResponderEliminarNina, prefiro que me trates por tu, pode ser?
EliminarEssa barreira não faz qualquer sentido. Assusta as pessoas, cria desconfiança e mata a esperança. Ainda bem que está tudo bem :)
Revi-me na parte em que dizes que a palavra cancro deixou praticamente de existir no teu vocabulário, quando passou a estar mais próximo. Também eu deixei de utilizar e até me faz confusão (irrita, vá) quem a emprega sem justificação.
ResponderEliminarÉ uma palavra que ganhou uma nova dimensão para mim.
EliminarComo profissional de saude posso dizer que muitas das vezes fazemos transparecer um ar de "distanciamento", não apenas por este tipo de patologia em especifico, mas relativamente a todas as doenças mais graves em geral e sobretudo quando de crianças se trata. É certo que o profissionalismo é dos pontos mais importantes para a concretização de qualquer trabalho ou actividade e que o lado humano tem o seu peso, sobretudo quando se fala em saude/doença. O que muitas vezes não se sabe é que tb os profissionais de saude se debatem com o mesmo problema, quer ele seja de um familiar proximo, quer do proprio se trate. Cada um tem um modo proprio de lidar com a doença em si. Usualmente os profissionais de saude são na sua maioria os piores doentes, possivelmente porque já têm conhecimento de todo o processo e evolução, e talvez por isso se diga que os ignorantes nestas materias são pessoas mais felizes. A "mascara" que muitas vezes se mostra é na sua maioria uma "defesa" tanto para nós proprios como para os doentes. Enquanto profissionais não podemos nem devemos viver todas as situações com que diariamente nos debatemos, tendo em vista o risco de afectar o nosso melhor desempenho. Do mesmo modo, fazer transparecer emoções menos adequadas, pode precipitar nos doentes e familiares maior ansiedade ou depressão relativamente à situação em causa. Mas quantas não são as vezes que depois do doente ou familiares sairem dos nossos gabinetes nos vêm as lagrimas aos olhos. Uma vida longa, com saude e uma morte subita, é o desejo da maioria de nós.....Saude! .........e enquanto por cá andarmos nada como fazer os outros, mas sobretudo os que nos são queridos felizes, e com a alegria e felicidade dos outros edifiquemos tb a nossa....:-)
ResponderEliminarMuito obrigado pelo teu testemunho. Vou dar-te um exemplo, que neste sentido, se enquadra um pouco com o que dizes. Este médico esteve com uma mulher, jovem, grávida e cujo caso não tem, infelizmente, solução. Aquilo que ele é e a boa energia que passa aos doentes, só desaparece nos momentos em que está sozinho. Ele deixa que esse sentimento - que não consigo imaginar como será - o devore quando sai do hospital.
EliminarObrigado mais uma vez.
Tenho também algumas muito boas experiências com médicos, sempre relacionadas com a minha mãe. Uma médica de medicina interna, que lhe conseguiu regular a coagulação do sangue depois de diversos AVC e embolias pulmonares. E um psiquiatra, que consegue equilibrar a sua doença bipolar sem a encharcar de medicação e pô-la a ter uma vida mais ativa do que a maior parte das pessoas. Agradeço-lhes do funco do coração terem mudado a vida dela (e a minha).
ResponderEliminarFelizmente, existem profissionais muito bons. Tal como tu, estou eternamente grato ao que tem ajudado a minha mãe.
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