23.12.15

uma carta que ninguém deveria ter de escrever

“Na sexta-feira, dia 11 de dezembro, em pânico, liguei para o 112 por volta das 14h30. O David ficou paralisado do lado direito, sem conseguir formular frases. Tentava falar mas era incapaz, apenas conseguia gritar e chorar. A ambulância chegou, o David estava consciente e ciente daquilo que lhe pediam e perguntavam, porém, continuava sem conseguir expressar-se. Ajudaram-no a vestir-se e a calçar-se, colocando-o de seguida numa cadeira de rodas, visto que não tinha força na perna direita.

Fui com eles na ambulância. O David chegou ao Hospital de Santarém e foi logo colocado em observação. Fizeram-lhe exames, enquanto aguardei.

Após 30 a 45 minutos de espera, deixaram-me vê-lo. O David dormia mas por vezes abria os olhos. Estava muito agitado. O médico acordou-o e pediu-lhe para levantar os braços e ele conseguiu levantar apenas o braço esquerdo. Pediu-lhe para levantar as pernas e ele conseguiu levantar a esquerda e, muito lentamente, levantou a direita. Estava consciente.

Pouco tempo depois, fui chamada, eu e a avó materna do David, que se encontrava no hospital por outros motivos. Anunciaram-nos, numa sala à parte, que o David tinha tido uma hemorragia cerebral e um grande hematoma e teria de ser transferido de urgência para o Hospital de São José, em Lisboa. Apenas tive tempo de lhe dar um beijo. Ele abriu os olhos e eu disse-lhe: “Eles vão cuidar de ti.” Foi de imediato transferido pelo INEM, penso que seriam cerca de 18h.

Esperei umas horas pelo meu pai, que veio de Coimbra buscar-me para seguirmos para o Hospital de São José. Chegámos por volta das 22h, penso eu. Pedimos informações, procurámos o edifício que nos referiram, porém estava fechado.

Apareceu uma enfermeira, que gentilmente nos fez entrar e aguardar pela médica. Esperámos cerca de uma hora. No final, foram dois médicos que se reuniram connosco numa sala. Estávamos presente eu, o meu pai, Fernando, e a Sra. Zélia, mãe do David, que fomos buscar a Vila Chã de Ourique no caminho para o Hospital de São José.

Ali anunciaram-nos, descontraidamente, que se tratava da rutura de um aneurisma, que o sangue se espalhou pelo cérebro e que, geralmente, estes casos de urgência teriam de ser tratados de imediato, ou seja, o doente teria de ser logo operado. Mas como os médicos referiram, infelizmente calhou ser numa sexta-feira, logo não iria haver equipa de neurocirurgiões durante o fim de semana. O David teria de aguardar até segunda para ser operado. Deram-me a entender que o sangue espalhado pelo cérebro poderia, muito provavelmente, causar sequelas e posteriormente múltiplos AVC.

No sábado, dia 12, visto que a família mais próxima do David decidiu visitá-lo, estando eu em Coimbra, decidi ficar, ligando constantemente para o hospital para pedir informações (raramente era atendida ou pediam para ligar mais tarde). Pedi ao Sr. José, tio do David, para pedir informações junto às enfermeiras ou aos médicos, pois queria saber se existia a hipótese de o David ser transferido para outro hospital, de forma a ser operado o mais rapidamente possível. Pelo que entendi, a melhor opção era sem dúvida o Hospital São José e não seria apropriado transferi-lo.

Nesse mesmo dia, a mãe do David referiu que ele abria os olhos, levantava os ombros e sentia frio nas pernas, tendo tido a iniciativa de se tapar com o lençol, apesar de as enfermeiras terem informado que não estaria consciente, que não iria reconhecer-nos e que estava demasiado confuso e perturbado. Visitei o David no domingo, dia 13, e ele estava em coma induzido.

Disseram-me que o caso se tinha agravado, que ele vomitou durante a noite, que começou a fazer demasiado esforço para respirar e que o coma induzido seria uma forma de ele não permanecer agitado e de o ajudar a respirar, de modo também a prepará-lo para a cirurgia de segunda-feira de manhã.

Anunciaram-me que a sorte dele era ser novo, mas que o grande problema era o sangue espalhado pelo cérebro, que poderia provocar sequelas e outras complicações. Porém, algo bom aconteceu. Segundo o médico, criou-se um coágulo de sangue que permitiu “fechar” a veia, mantendo o sangue a circular dentro da mesma e permitindo que ele ficasse calmo e que a veia não voltasse a rebentar. A operação consistia na remoção do hematoma e desse coágulo, selando a veia através de um “clipe” e eliminado definitivamente o aneurisma.

Por outro lado, o meu pai falou com outra médica, que confirmou que a operação seria no dia seguinte de manhã e que seria melhor aguardarmos 48 horas antes de visitar o paciente, para não ficar perturbado.

No dia seguinte, segunda-feira dia 14, liguei várias vezes, querendo saber como tinha corrido a operação. No momento em que atenderam, por volta das 14h30, disseram-me simplesmente que não tinha sido realizada e que seria melhor deslocar-me ao Hospital São José, sem acrescentarem mais informações. Eu própria tive de informar a mãe do David, visto que ninguém do hospital nos telefonou.

Mais uma vez, fomos de Coimbra até Vila Chã de Ourique buscar a mãe do David. Chegámos ao Hospital de São José e aí anunciaram-mos que o David tinha tido morte cerebral e que seria irreversível. Não me deram mais detalhes. Completaram esta grave notícia, anunciando que no mesmo dia ou no dia seguinte ele seria operado para a doação de alguns dos seus órgãos.”

Esta carta foi escrita por Elodie Almeida, namorada do jovem David Duarte que morreu no Hospital de São José, em Lisboa, porque não havia equipa para o operar.

14 comentários:

  1. De coração apertado...
    Há coisas que nunca deviam acontecer...
    Que sirva para alguma coisa...

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    1. Felizmente está a servir. Infelizmente não deveria ser necessário isto acontecer para as coisas mudarem.

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  2. ..e assim vai o nosso país :(

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  3. Vergonhoso! Não havia equipa para o operar... então que tal chamar alguns médicos para formar uma equipa, operar e salvar uma vida??? As pessoas que fazem o curso de Medicina já não fazem o Juramento de Hipócrates?! Eu não sou médica mas para mim uma vida vale mais que uns meros honorários... Mas é a minha opinião e vale o que vale! Infelizmente, em Portugal, e em várias áreas importantes - nomeadamente, na Medicina! - a culpa morre sempre solteira!

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    1. Infelizmente envolve muita coisa. E infelizmente nunca ninguém tem culpa. Alguém, dos casos com os bancos, está preso? E são erros de gestão. Olhamos para o estrangeiro e vemos pessoas com penas superiores a 100 anos por crimes semelhantes.

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  4. Ao que o nosso país chegou!!
    A saúde do seu povo, não é problema para ninguém, em pleno século XXI, dá-se mais valor ao dinheiro "poupado" no sector da saúde, em vez de cuidar da saúde de todos, não é de todo um direito, mas sim um dever dos médicos, um dever da própria Ordem dos Médicos.
    Ouvi hoje nas noticias, que a Ordem vai cuidar para que os hospitais tenham médicos/cirurgiões de plantão também ao fim de semana!
    O que me doí imenso é ver que esta decisão sensata, só foi apresentada porque o David morreu!
    O meu país envergonha-me cada vez mais, eu que tinha tanto orgulho nele, está quebrado, cheio de lacunas, onde reina a corrupção, onde o dinheiro é posto acima das nossa vidas!
    Os meus sentimentos a família do David!

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    1. Felizmente temos um sistema de saúde "muito" bom quando comparado com a maior parte do mundo. Infelizmente, temos um "sistema" cheio de interesses e esquemas. Infelizmente, temos pessoas que se aproveitam das lacunas desse "sistema". E infelizmente só quando alguém morre é que se alteram as coisas.

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  5. Já há algum tempo que digo, que este país não é sítio para se ter, criar e educar um filho, e são situações como esta que me fazem ter a certeza disso, cada vez mais. É uma vergonha o que aconteceu, alguém que morre porque os médicos não estão a trabalhar ao fim de semana. Uma vergonha mesmo!

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    1. Portugal também não é tão mau assim. Se juntares clima, segurança, sistema de saúde e outros factores percebes que temos um país melhor do que muitos.

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