16.10.14

valores de mercado. ordenados. borlas. medo. chantagem. e um ciclo que não tem fim

Vivemos na época do “quase de borla, idealmente de borla”. Ou seja, quem quer contratar algo exige um serviço de excelência. Por exemplo, na minha área, que é a das palavras, procuram-se pessoas que escrevam textos que estejam praticamente ao nível de um Nobel da literatura. Obras magníficas. É isso que se quer. Mas, por outro lado, existe disposição para pagar um valor simbólico – e escolho esta palavra para ser simpático – que na realidade compra menos palavras do que aquelas com que este texto já conta. Esta é a triste realidade. Que se aplica a quase todas as áreas e não apenas à minha. As pessoas procuram serviços de elevado nível que sejam quase de borla, idealmente de borla.

Esta realidade aplica-se também a quem procura emprego e não apenas a um serviço ocasional. Os patrões querem os melhores trabalhadores do mercado. Mas, estão dispostos a oferecer ordenados ridículos. Sei de casos onde são oferecidos 500 euros a recibos verdes. O que é uma verdadeira fortuna quando comparado com ofertas de 200 euros/mês ou valores ainda mais baixos, como zero euros porque, por outro lado, “vais ganhar experiência e é uma boa oportunidade para ti. É um investimento de carreira”, dizem. E quem trabalha por estes valores não se pode dar ao luxo de revelar descontentamento. “Já viste a quantidade de pessoas que nem emprego têm”, é o que ouvem. “Tu és um(a) sortudo(a)”, reforçam.

Os valores praticados levantam diversas questões. Por exemplo, se são praticados é porque as pessoas aceitam. E está é a dura e crua realidade com a qual concordo e que não pode ser ignorada. Um dos problemas dos mercados de trabalho é que existem pessoas que aceitam fazer bons (ou sem qualquer qualidade) trabalhos quase de borla, idealmente de borla. E isto só irá mudar quando as pessoas deixarem de aceitar ordenados de 200 euros por mês. Porque, enquanto aceitarem estes valores, eles vão ser oferecidos. E amanhã passa para os 150 euros. E se alguém aceitar este novo valor, passará a ser praticado e usado como regra. “Ofereço-te 150 euros por mês. Aceitas?”, “Não!”, “Não faz mal, há quem aceite”. E esta, quer se queira ver ou prefira ignorar, é a realidade dos mercados de trabalho.

E isto está ligado com o medo. Algumas pessoas aceitam receber 200 euros por mês porque não se podem dar ao luxo de dizer que não. Porque a realidade é que esse montante faz toda a diferença na vida da maior parte das famílias portuguesas, mesmo que seja o único rendimento da pessoa. E o medo faz com que digam que sim, mesmo que existam pessoas a dizer que não aceitam e que acabam por ser postos de parte pela recusa. E este medo é aproveitado ao máximo por quem procura um serviço ou um empregado. Medo esse que chega a andar de mãos dadas com a chantagem. Que é feita a muitos trabalhadores. Que estão dispostos a tudo para não perder um emprego. Mesmo que seja de merda e mal remunerado.

E tudo isto é um ciclo sem fim à vista. Cada vez mais conheço histórias de pessoas que estão no meio de tudo o que referi. Que se sentem entre a espada e a parede. Aceito um ordenado de merda ou tenho a coragem de dizer não e arrisco ficar eternamente à espera de algo justo, que poderá nunca chegar? É triste mas é uma realidade da qual poucos conseguem escapar.

15 comentários:

  1. Estive três anos e meio a receber entre 150 € a 300 € mensais, sem direito a sub. ferias nem subs. Natal.... Pagava eu gasolina e qualquer outra despesa associada a trabalhar fora. Fui muitas vezes humilhada... Mas tenho duas filhas para criar.

    Um abraço

    Sandra

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    1. Lá está, as pessoas acabam por não ter hipótese. E se recusarem, há quem aceite. E isto é um ciclo sem fim.

      Beijos

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  2. PS: Trabalhava das 9h às 18h. Era um trabalho que aos olhos de alguns seria muito bom e bem remunerado, mal sabiam eles...

    Sandra

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    1. Acho que algumas pessoas têm a ilusão de que certos empregos são muito bem remunerados mas não têm qualquer conhecimento.

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  3. É uma pescadinha de rabo na boca...as pessoas desesperam pelo que permitem que isso aconteça. E isso só acontece porque as pessoas permitem e depois outras desesperam...enfim.

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  4. Falando de emprego contratual existem coisas que não entendo, por exemplo: se um patrão não consegue pagar mais que o salário mínimo e quer um bom trabalhador, porque não o contrata a meio tempo? Não se pode achar justo pedir a um bom profissional que trabalhe 40 horas por semana e receba uma miséria. "Áh, mas tenho trabalho, para o dia inteiro" então, se há trabalho, porque não pagar mais?

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    1. Porque há quem aceite. Infelizmente, é mesmo assim. E a crise é sempre uma boa desculpa. Até para quem não a sente.

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  5. Eu ainda não tenho filhos a cargo mas se arrebito cachimbo no meu trabalho estou tramada. Eu e o meu marido trabalhamos no mesmo sitio e já não éa primeira vez que somos prejudicados por isso. Um vir-se embora (por sua vontade ou da empresa) até dava, mas numa empresa tão "familiar" (mas apenas nos maus hábitos) não iriam saber separar as coisas e vinha logo o outro atrás. E a empresa claro que não iria separar as coisas porque até hoje nunca o fez.
    2 desempregados já não dá. Também comemos e gostamos de ter eletricidade, gás e água em casa.
    Somos obrigados a trabalhar lá e continuar à procura de melhor...

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    1. Esses casos são ainda mais complicados. Acho que fazem bem em estar empenhados no que fazem, procurando algo melhor.

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  6. Ando a ver se mudo de emprego. Tenho imensa experiência e Licenciatura. E há bem pouco tempo recusei uma oferta, que me queriam fazer ver que era espectacular, onde me queriam pagar 600€. Meu Deus. Eu disse redondamente que não, e principalmente depois de me terem dito que, a empresa em causa tinha milhares de € de volume de negócios. É uma vergonha. Mas é como dizes, enquanto houver malta disposta a baixar as calcinhas, tudo o resto é que se lixa... Mas eu não aceitei. E não me arrependo. Mantenho a fé e a esperança de que ainda há empresas que valorizam os seus recursos humanos. Poucas, mas há. E mal de nós se perdermos toda a esperança... Nesse dia mais vale desistir.

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    1. Sou como tu. E só pondero um valor um pouco mais baixo caso seja um projecto pessoal muito aliciante. Mas não condeno quem não se sente em condições de recusar. Mas a verdade é que enquanto aceitarem, os valores vão continuar a baixar.

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  7. Já conheci pessoas que trabalhavam abaixo dos mínimos de dignidade e nem era para comer, mas sim para terem coisas superfulas. Não condeno, mas fazer de escrava apenas para poder ir a restaurantes caros, fumar e ter roupas de marca? Os novos escravos são pessoas giríssimas, pelo menos, quando saem do trabalho é todo um outro mundo que os espera. (atenção, tenho noção de que é um pequeno nicho, mas existe).

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    1. É claro que existe. Por exemplo, alguns jovens que vivem com os pais pensam apenas no momento. E esse momento, como não têm despesas com casas e afins, é ter dinheiro que pague a roupa e as saídas à noite. Trata-se de um nicho mas existe.

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